Meu labirinto de leituras

Andre Azevedo da Fonseca
5 min readMar 8, 2019

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O escritor argentino Jorge Luis Borges dizia que as bibliotecas estão povoadas de espíritos, pois livros são como sarcófagos onde hibernam as almas dos autores. Gênios literários depositam a essência do próprio espírito nos textos. O ato da leitura faz com que essas idéias e emoções despertem e flutuem pela nossa imaginação, passando a iluminar as profundezas de nossa alma. É por isso que grandes escritores tornam-se imortais: eles renascem através de nosso entusiasmo diante as suas obras.

Quando nos debruçamos sobre um livro e nos rendemos ao espírito do autor, somos levados, passo a passo, a um labirinto de experiências. Através da literatura percebemos constelações de realidades possíveis e enxergamos a multiplicidade da vida. Por isso é ótimo travar esse contato na juventude, de preferência antes dos 20 anos, pois nesse período nossa alma ainda está sedenta de vida. Tornar-se adulto sem mergulhar na literatura embrutece a alma. A vida sem os livros nos deixa velhos de alma seca, dura, enfastiada e escura. Quem desperdiça a vida sem curtir a experiência literária deixa de experimentar uma das propriedades mais essenciais do espírito humano.

Quando falo de literatura em sala de aula, meus alunos sempre me cobram sugestões para se embrenharem nessa descoberta. Eis aí, então, uma pequena lista de alguns escritores que fizeram minha cabeça na juventude. Na verdade, eles mais me perturbaram do que ofereceram respostas; mas é justamente por isso que são bons: é assim que eles ensinam a pensar. Deixei de lado os autores que li depois dos 20 anos, pois a ideia aqui é dizer coisas que de fato interessem a uma jovem mente inquieta.

Evidentemente, prefiro mencionar escritores e escritoras, e não as obras, porque a essência de cada autor dificilmente se reduz a um livro só. Por fim, se cada um deles ou delas me ensinou alguma coisa diferente, não quer dizer que ensinem as mesmas coisas a outros leitores. A lista é totalmente anárquica; os escritores se sucedem de acordo com as regras secretas de minha memória. Sugiro que você leia com calma, parando de autor em autor, para curtir cada uma das provocações. É assim que se faz.

Pois bem, com William Burroughs aprendi que não devemos acreditar em ninguém nem tampouco duvidar do que quer que seja. Com Gabriel García-Marquez, que a ficção é mais real que essa fantasia que chamamos de realidade. Com Carlos Castañeda, que o mundo é muito mais colorido do que suportam os olhos. Com Lewis Carrol, que a lógica da realidade é incoerente, mas as coisas são assim mesmo. Com Jorge Luis Borges, que o enigma é perene, pois a mente humana é um labirinto de espelhos. Com Mary Shelley, que a ciência é uma tragédia inevitável.

Dostoievski me mostrou que somos povoados por demônios: nossos maiores inimigos estão dentro de nós mesmos. Com Montaigne, aprendi que filosofar é aprender a morrer. Com Nabokov, percebi que a inocência pinta o demônio de rosa. Com Voltaire, que o otimismo aleija. Com Turgeniev, que amor e rancor tropeçam no baile da rima. Emily Brönte iluminou com trevas as profundezas do amor. Com Choderlos de Laclos, aprendi que a paixão é um suicídio no abismo. Com François Sagan, que emoções contraditórias são parceiras desajeitados da mesma dança.

Com George Simenon percebi que os homens perspicazes não fazem mais que tatear suas dúvidas até que o acaso ilumine uma intuição. Com Oswald de Andrade descobri que um intelectual é um canibal. Com Millôr Fernandes aprendi que quando a gente menos espera, o óbvio nos surpreende. Com Aldous Huxley, que o mundo é do tamanho de nossa percepção. Ele me mostrou também que pensar é um enorme prazer. Com Oscar Wilde, aprendi que a melhor maneira de se livrar de uma tentação é cedendo a ela. Com Jack Kerouac, que o improviso da vagabundagem é o supra-sumo da criatividade. Com Campos de Carvalho, que a lucidez é um disfarce da loucura. Com Marina Colasanti, que a palavra é uma chave para destrancar a alma.

Com Tolstoi, percebi que o caráter é a maior medida do homem. Com Herman Hesse, que é preciso subir as escadas do inferno para alcançar o céu. Com Gogol, que o humano é um animal ridículo, do berço ao caixão. Com Nietzsche, que o projeto humano é superar-se ao infinito. Com Salinger, que a autoconfiança se ergue sob um pântano de insegurança. A propósito, se eu devesse indicar apenas um livro a um adolescente, sugeriria O Apanhador no campo de centeio, de Salinger.

Com George Orwell aprendi que podemos ser controlados feito um pacote de presunto se deixarmos os políticos apropriarem-se do poder do Estado. Com Mário de Andrade, que o Brasil não tem história: tem rapsódia. Com Mário Quintana, que o autodidata é um ignorante por conta própria (que na minha opinião, ainda é melhor que o ignorante graduado…).

Com Fernando Pessoa, aprendi que o homem é divino mesmo sem a existência de Deus. Com Saramago, que o limite entre o homem e a besta é um fio de ficção. Com Rachel de Queiroz, que a mulher sertaneja que não conhece sua força é um gigante amedrontado. Com Kafka, que quando o inacreditável torna-se comum, nossa sensibilidade se anestesia. Com Clarice Lispector, que a alma é delicada como uma tormenta.

Com Paulo Leminski aprendi que a poesia pode te virar do avesso. Com Alice Ruiz, que a poesia é uma gota de perfume no olho. Com o Chacal, que poesia é caso de polícia. Com Allen Ginsberg, que a poesia é um entorpecente. Com Rimbaud, que a poesia, afinal, é inútil como a vida…

Chega. Esses foram alguns dos autores que fizeram minha cabeça na minha iniciação literária. Depois vieram muitos, muitos outros que ainda me acompanham no meu amadurecimento. No entanto, sei que nada se compara em grandeza e intensidade com tudo aquilo que ainda não li. A literatura é uma fonte que, quanto mais se bebe, mais seca fica a garganta. Quanto mais livros devoramos, mais famintos ficamos. Quanto mais caminhamos, maior o labirinto…

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Andre Azevedo da Fonseca
Andre Azevedo da Fonseca

Written by Andre Azevedo da Fonseca

Professor e pesquisador no Centro de Educação Comunicação e Artes (CECA) da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

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